sábado, 7 de maio de 2011

Marcel Gautherot em Brasília* (por Andrey Schlee & Sylvia Ficher)

             Para muitos, Brasília nasceu pronta, tal qual uma Pallas Athena saída completa – com todos os seus atributos de guerreira – da cabeça de um Zeus Kubitschek. É esta ilusão que as fotos de Marcel Gautherot (1910-1996) reiteradamente desmentem. Nelas está acuradamente documentado o choque entre a natureza agreste e os primeiros e indeléveis indícios do artifício humano, o solo pisado pelos tratores, a terra desnudada para receber a cidade.
          Há uma preferência pelos prédios em obras, estruturas descarnadas por vezes habitadas apenas por seus próprios construtores. São mais esqueletos do que prédios, são coisas no vazio, coisas sem a aura que iriam adquirir ao longo deste meio século de existência. Arquiteturas desprovidas de função. Sombras muito longas. Imagens oníricas de um anseio tresloucado, aparentemente inatingível. Não eram ainda ícones de nada, tal qual enigmas indecifrados. E Gautherot parece não se preocupar em decodificá-los, dedica-se a retratar um por um, todos com a mesma igualitária precisão. Uma Brasília em raio x, quase transparente...
          Um canteiro de obras se metamorfoseando em Capital. Uma arquitetura em estado bruto, de madeira, de ferro, de concreto. Formas e fôrmas com as marcas das mãos de seus trabalhadores sempre anônimos. Uma arquitetura de severinos. De “muitos severinos, iguais em tudo e na sina... a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima,” como disse João Cabral de Melo Neto. Mas esses protagonistas não citados nos créditos da saga brasiliense, individualmente, também estão no foco da câmara de Gautherot, surpreendidos no improvisado cotidiano do seu improvisado habitat – de lona e de saco e de poeira. Foi em suas fotos severinas tomadas nas cidades satélites que o artista francês – filho de pai pedreiro e mãe operária – deu vida à maquete em construção.
          Poucos anos mais tarde, Marcel Gautherot iria retornar à Capital. Voltava para fotografar os palácios da cidade recém-inaugurada. E os fotografou então já revestidos e travestidos em marmórea pureza. A Brasília do alvoroço havia cedido lugar à Brasília do Alvorada. O seu olhar sensível registrou tanto o fazer como o feito, tanto o perfeito como o imperfeito.
            *apresentação do livro Brasília, editado pelo Instituto Moreira Salles)

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