Renato Marsiglia é riograndino e ex-árbitro de futebol. Desde que abandonou o apito amigo (da dupla GreNal), passou a ser comentarista da RBS. Vale dizer: passou a ser comentarista dos chamados "grandes", ignorando, olimpicamente, o futebol do interior. Apesar disso, o DP publica semanalmente uma coluna assinada pelo papareia, na qual ele trata dos assuntos ligados aos times da capital (exceto ao Cruzeiro, ao São José ou ao Porto Alegre, que, provavelmente, nem sabe que existem). Numa dessas, reclamou da forma rude como os jogadores dos clubes do interior se comportam contra os "grandes", perigando, assim, machucar algum milionário craque. Já pensou se um qualquer lá do Lajeadense dá uma chegada no Guiñazu (aquela "moça") e tira o cara de um jogaço da Libertadores (como esses que se tem visto, contra gigantes do futebol internacional, como o Boyacá Chicó, o Jorge Wilsterman e o Liverpool charrua!).
Outro que segue o mesmo caminho é o nosso glorioso conterrâneo, Leonardo Gaciba. Não tendo mais condições físicas para se manter como árbitro de futebol, aposentou seu apito e, imediatamente, foi contratado pela RBS como "comentarista de arbitragem". Achou perfeitos os 8 minutos de descontos dados "contra o Caxias" no jogo final do 1º turno do Gauchão. Acharia bem adequado, certamente, que estivesse o jogo se desenvolvendo até agora, se o Grêmio não tivesse, naquele "tempo extra", empatado e levado a decisão para os pênaltis.
Esse comportamento é ancestral! Comentam conforme apitavam.
No último dia de 1955 a Manchete Esportiva publicou a seguinte crônica de Nelson Rodrigues. (Há 55 anos ainda não existia o comentarista de arbitragem)
O Juiz Ladrão
De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado sempre tem razão.
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.
Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos. Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.
Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.
Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos. Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.
Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.
Sinceramente não sei o que é pior: se a coluna do papareia (quartas) ou a do "filhote do bobina" (domingos), ambas publicadas no tal pasquim.
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