Nascido em 1955, Mia Couto (António Emílio Leite Couto) é o mais famoso escritor moçambicano, já tendo publicado 28 livros (traduzidos e distribuídos em 27 países), que lhe renderam inúmeras premiações, especialmente no exterior. Quando jovem, abandonou o Curso de Medicina para se juntar à luta anti-colonialista em Moçambique. Após a independência do seu país, em 1975, trabalhou como jornalista em Maputo por mais de dez anos. Licenciado em Biologia, atualmente realiza pesquisas na área ambiental no seu país.
Em 2011, Mia participou das Conferências de Estoril, em Portugal, quando personalidades do mundo todo trataram do tema "segurança". Entre os participantes, foi o único escritor. E, por ser escritor, optou por ler o breve (mas preciso) texto que escrevera e ao qual dera o título "Comemorar o medo". Vale a pena ver, ouvir e ler o recado dele a todos:
"O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças, sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano: de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender.
Quando eu deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nesta altura algo me sugeriu o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial onde nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam as crianças, os chamados que turistas lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos turistas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a História. A mais grave desta longa herança da intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de ordenação, precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: “Para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mas segurança privada, e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos, e a suspensão temporária de nossa cidadania”. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que de um e de outro lado aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira, e a humanidade é imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida, e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Por que motivo apenas no ano passado se gastou um trilhão e meio de dólares em armamento militar. Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia, são exatamente os que mais armas venderam ao coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver, e não apenas discutir, a segurança mundial, temos que enfrentar ameaças reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo utilizada todos os dias, em todo mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração, muito pequena, do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Menciono ainda outra silenciosa violência: em todo mundo, uma em cada três mulheres, foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta, essa é uma condenação antecipada pelo fato, simples, de serem mulheres. A nossa indignação porém, é bem menor que o medo. Sem nos darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militar sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões éticas são esquecidas por estar provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade. É sintomática que a única construção humana que possa ser vista do espaço, seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflito nem parou os invasores. Provavelmente morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Dizem que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos, convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo pode nos aprisionar. Há muros que separam nações; há muros que dividem pobre dos ricos; mas não há, hoje no mundo, muros que separem os que têm medo dos que não têm medo.
Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós: do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global. E diz ele:“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, e as armas têm medo da falta de guerras”. E se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe."
Bestial, pá! que maravilha acabei de ler, medo, medo e medo é o deus verdadeiro por ser anterior ao criado pelo homem, um sentimento natural, para piorar virou um grande aliado da propaganda de dominação de nossos sonhos através da mídia mundial.
ResponderExcluirAgora o que vale é a tática de aborto do pensamento, antes que algum "maluco" assanhe nossa capacidade crítica.
A RBS/Globo avisou que um frango em um pátio no Cantão morreu de gripe A, no outro dia o "Tamiflu" remédio que combateria a "epidemia" mundial sumiu das farmácias em Porto Alegre, talvez já estejam com a validade vencida, sem uso ou eficácia comprovada.
Epidemia foi a gripe espanhola, por absoluta falta de recursos para combatê-la, não serve sequer como comparação pelo número absurdo de de vítimas em relação a "epidemia midiática".
Meu maior medo era um dia não poder mais jogar futebol, agora não tenho mais medo de nada.
E por falar em Angola lembra que apelidei o Claudiomiro (meu eterno candidato) de Agostinho Neto durante as guerras coloniais em 75, em Moçambique era Samora Machel (líder da FRELIMO, Frente Nacional para libertação de Moçambique) em Angola, o Agostinho do MPLA ( Movimento para Libertação de Angola ).
abraço Angelo
PS: na postagem do Andrey descobri o quanto somos pobres, lá comem carne no avião e nós aquelas barras de cereais enjoativas de tanto açúcar.
Como é que não elegemos o Claudiomiro presidente do CAFV? Bom, pelo menos fomos testemunhas dele, bebum, ter atuado como juiz (!) num "juri simulado", lá no salão nobre. E, no mesmo local, vencer um inesquecível "concurso de oratória". Prêmio das mãos da Dra. Rosah!
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