terça-feira, 14 de junho de 2011

Complexo de vira-latas* (por Nelson Rodrigues)

       Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
       Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: - “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.
       E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
       Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
       A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: - “O que vem a ser isso?”. Eu explico.
       Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
       Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

*Publicada originalmente na Manchete Esportiva de 31/5/58. Última crônica de Nelson Rodrigues antes da estreia do Brasil na Copa da Suécia. Extraída do livro "À Sombra das Chuteiras Imortais - Crônicas de Futebol" (Ed. Companhia das Letras).

Resolvi buscar e reproduzir integralmente esta crônica em razão da referência à expressão que a ela dá título no texto do Desembargador Gischkow Pereira, postado anteriormente. Sugiro ao leitor um exercício: identificar "argumentos" na imprensa (especialmente nos jornais diários e nas revisas semanais) que são construídos sobre o tal "complexo de vira-latas" que nos acomete ciclicamente. Comecem, por exemplo, com matérias sobre a Copa de 2014... 

2 comentários:

  1. fantátisca esta questão!
    penso que segundo uma análise "pseudo antropo/sociológica"(também conhecida como "de boteco",rsrssr) sentimos necessidade de "legitimar" uma posição justamente através de uma comparação que busque aproximar,ou mesmo contrariar, uma estrutura social/coletivamente entendida como superior.
    este poder "validador" que é exercido pela ciência segundo a lógica ocidental, aparece também entre os guarani (tomando como regra sua mitologia ou os "guarani de antigamente")como exemplos.
    enfim...
    complexo de vira-lata é afirmar que a boca do lobo é a bombonera de pelotas...quando na verdade,a bombonera é a boca do lobo de buenos aires.
    grande abraço
    merenda

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