Alguma coisa aconteceu no coração do Brasil quando acabaram com as lutas de "catch". Elas eram um sucesso na TV e seus astros viajavam em caravanas pelo país, apresentando-se em ginásios e circos. As lutas não eram lutas, eram teatro. Não eram exatamente combinadas, mas seguiam um roteiro estabelecido e havia um acordo tácito de que ninguém sairia do ringue machucado, mesmo que saísse arremessado.
O roteiro básico não variava: eram os bons contra os maus, e os bons sempre ganhavam. Ou só perdiam quando o adversário traiçoeiro recorria a um golpe especialmente baixo, sob uivos de raiva da plateia. E a reação da plateia fazia a parte do teatro. Havia uma suspensão voluntária de descrença, e todos torciam pelo Bem contra o Mal - ou pelo bonito contra o feio, o esbelto contra o barrigudo, o correto contra o falso - com um fervor que não excluía a consciência de que era tudo encenação.
Era fácil distinguir os bons e os maus. Os bons eram atletas como o Ted Boy Marino, caráter tão irretocável quanto os seus cabelos loiros, que lutava limpo. Os maus tinham nomes como Verdugo e Rasputim, e comportamento correspondente ao nome. Lembro de um Homem Montanha, que de uma vez derrubou o juiz junto com o adversário. E não havia um Tigre Paraguaio?
Os bons geralmente começavam apanhando e, quando parecia que estavam liquidados e que o Mal triunfaria, vinha a eletrizante reação, durante a qual o inimigo pagava por todas as suas maldades. Humilhação e vingança, nada na história do teatro é tão antigo e tão eficaz. Nove entre 10 novelas de TV têm o mesmo enredo.
Não sei se ainda fazem espetáculos de "catch" pelo interior do país. hoje, na TV, o que se vê é o "ultimate fighting", ou "mixed martial arts", dois lutadores simbolizando nada trocando socos e pontapés sem simulação, quando não se engalfinham no chão como um bicho de duas costas e oito patas em convulsão. Nessas lutas não vale, exatamente, tudo - parece que esgoelar o outro e xingar a mãe não pode. mas é o "catch" despido da fantasia, com sangue de verdade. Não há mais mocinho e vilão, apenas duas máquinas de brigar, brigando. Nem Ted Boy Marino nem Homem Montanha, apenas a violência em estado puro. Sei não, acho que empobrecemos.
* Esta crônica do Luis Fernando Veríssimo foi publicada na Zero Hora de ontem. É, assim, ao contrário de inúmeras outras que têm sido "compartilhadas" no facebook, autêntica.
Rasputin demolindo o grande Ted Boy Marino. O Barba Ruiva não sabia (sabia sim!) o que lhe aguardava! |
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