Allende, a morte de um homem *
Até o ano de 1973, a república chilena era uma exceção na história política latino-americana. Ela não participara da triste crônica dos golpes militares da América Latina. Um regime civilista estável e forte, garantido pela constituição democrática de 1922, dominava os poderes tradicionais, fazendo com que as Forças Armadas chilenas, ao contrário dos seus vizinhos argentinos, se mantivessem numa tradição de respeito às instituições do estado. O Chile, junto com o Uruguai, formavam um dos regimes políticos mais estáveis do Continente. Então, a partir do dia 11 de setembro de 1973, tudo mudou. A derrubada do presidente Salvador Allende, obra de um violentíssimo golpe militar, conduziu o Chile a padecer por 17 anos sob uma ditadura – uma das mais cruéis e impiedosas da história latino-americana.
Chovia sobre Santiago
"Não tenho condições de ser um mártir, sou um lutador social que cumpre uma tarefa dada pelo povo. Entendam, porém, aqueles que querem fazer a história retroceder e desconhecer a vontade da maioria do Chile: sem ter carne de mártir, não darei nenhum passo atrás...Somente a balaços é que poderão impedir a vontade que é fazer cumprir o programa do povo." Salvador Allende, alocução das 8:45 h., da manhã de 11 de setembro de 1973.
O tom cinzento, pesado, daquele dia de 11 de setembro de 1973, parecia ser um prenúncio das coisas amargas e ruins que ainda estavam por vir. Chovia em Santiago, O pessoal do serviço de segurança do Palácio de La Moneda, sede da presidência chilena, ouviu pelo rádio às 5:30 h. de que a Armada do almirante Toribio Merino alçara-se na base naval de Valparaiso. Não demorou muito para que o presidente Salvador Allende chegasse ao prédio do executivo para organizar a resistência. Pensou-se, por primeiro, ser um motim só da esquadra. Uma rajada de metralhadora pesada vinda de bem perto, de uma das três esquinas que davam para o grande edifício, logo os sacudiu daquela ilusão.
Diversos tanques fechavam as ruas próximas e logo o presidente, por telefone, foi intimado a render-se. Allende, pela rádio Magallanes, em voz tensa mas calma, pediu que os trabalhadores ocupassem as fábricas, mas sem fazer-lhes um apelo geral pelas armas. Pelo meio da manhã daquele dia tenebroso, o tiroteio corria solto entre os carabineiros, os soldados do regimento Tacna mobilizados pelos golpistas e os membros da GAP, a segurança pessoal de Allende. Parecia uma cena medieval, na qual os janelões do antigo edifício – sede oficial do governo chileno desde 1846 - serviam como seteira para os seus escassos defensores (eram menos de trinta). O projeto da "via chilena para o socialismo", tão caro a Allende, se esboroava, se encolhia, agachado atrás dos balcões-trincheira do La Moneda.
Como o homem parecia não querer afrouxar, mesmo tendo-lhe ofertado um vôo seguro para o exterior, foi a vez dos caças à jato entrarem em ação. Cruzando como um raio num céu sem inimigos, os Hawker Hunter da força aérea chilena, lançaram seus foguetes, 18 ao todo, sobre o palácio. Pouca coisa então restava a fazer. A extrema esquerda, o MIR e outros grupelhos, que infernizara o governo da Unidade Popular, não deram o ar da graça, nem ousaram sair à ruas para gritar o seu slogan "Avançar sem negociar".
Pinochet assume o golpe
Enquanto o cerco prosseguia, o exercito chileno, de perfil prussiano, igual a uma força de ocupação colonial, dava início à operações-monstro nos cinturões operários de Santiago e de outras cidades menores. O general Augusto Pinochet, sucessor do general Carlos Prats, que renunciara 18 dias antes à chefia do exército, assumira a liderança do levante. Cara de pedra, colarinho apertado no pescoço, peito amedalhado, óculos escuros escondendo os olhos, era a própria caricatura trágica do general golpista latino-americano. Câmara Canto, o embaixador do regime militar do Brasil, à tarde, foi o primeiro a estar presente para reconhecer a junta de oficiais que assumira o poder.
Allende, antes disso, tendo nas mãos um fuzil AK (premonitório presente de Fidel Castro, quando visitara o Chile, em 1971), vendo tudo perdido depois de uma resistência de várias horas, convenceu os sitiados, um por um, a irem abandonando o palácio, prometendo a todos que ele sairia por último. Um pouco antes das dez horas, deu-se a sua última fala radiofônica. Os que restaram até o fim, rendidos, foram depois conduzidos aos quartéis onde os fuzilaram e, depois, os dinamitaram.
Allende se suicida
Reiteradas vezes ele dissera que não repetiria o destino de Balmaceda, o presidente que acabou se suicidando na embaixada da Argentina, depois de tentar inutilmente resistir aos golpistas de 1891. Porém, foi isso mesmo que ele terminou por fazer. Quando, enfim, o general Javier Palacios penetrou em meio aos entulhos do La Moneda, encontrou o presidente constitucional do Chile sentado num sofá vermelho com o tampo da cabeça estourada. Reconheceram-no pelo relógio. Ao entrar no salão da Independência, reservara a derradeira rajada para si: os dois tiros disparados do fuzil AK espalharam os seus miolos pela parede. Com ele, foi-se a única e última esperança de um socialismo democrático na América Latina. Como Getúlio Vargas, quase vinte anos antes, decidiu que não iria conceder aos seus inimigos o gosto de verem-no humilhado, escondendo-se numa embaixada estrangeira ou acovardado, fugindo assustado do país. Allende não, morreu como um homem.
*Texto do historiador Voltaire Schilling
A Reconquista do Chile*
Uma grande nuvem se eleva do palácio em chamas. O presidente Allende morre em seu posto. Os militares matam milhares pelo Chile afora. O Registro Civil não anota os falecimentos, porque não cabem nos livros, mas o general Tomás Opazo Santander afirma que as vítimas somadas não chegam a mais do que 0,01% da população, o que não é um alto custo social, e o diretor da CIA, Willian Colby, explica em Washington que graças aos fuzilamentos o Chile está evitando uma guerra civil. A senhora Pinochet afirma que o pranto das mães redimirá o país.
Ocupa o poder, todo o poder, uma Junta Militar de quatro membros, formada na Escola das Américas, no Panamá. Lidera-os o general Augusto Pinochet, profesor de Geopolítica. Soa música marcial sobre um fundo de explosões e rajadas de tiros: as rádios emitem decretos e proclamas que prometem mais sangue, enquanto o preço do cobre se triplica subitamente no mercado mundial.
O poeta Pablo Neruda, moribundo, pede notícias do terror. De quando em quando consegue dormir, e, dormindo delira. A vigília e o sono são um único pesadelo. Desde que escutou pelo rádio as palavras de Salvador Allende, seu digno adeus, o poeta entrou em agonia.
*Eduardo Galeano (na trilogia Memória do Fogo - O Século do Vento, LP&M)
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