segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Aldyr Garcia Schlee trata da fronteira imaginada em sua literatura na sétima entrevista da série Obra Completa*


Em três décadas de uma carreira paciente, Aldyr Garcia Schlee tornou-se um dos grandes contistas do Estado. Nesta sétima entrevista da série, ele fala da Fronteira imaginada de sua literatura.
Zero Hora — Seu primeiro livro sai em 1983, em uma época em que o senhor já contava por volta de 50 anos e tinha uma carreira como ilustrador e artista gráfico. Por que tão tarde?
Schlee —
Acho que porque, naquela época, não havia muita oportunidade de publicação, ao contrário do que acontece hoje. Era caro e impensável alguém se lançar literariamente mandando imprimir por conta seu próprio livro. Não passava pela minha cabeça isso. Por isso, concorri em alguns concursos literários, em todos com alguma marca que me incentivou a continuar. Tentei primeiro aqui no RS, com um livro chamado Jaguarão e o Resto do Mundo, que ganhou menção honrosa. Depois, concorri duas vezes ao prêmio José Lins do Rego, também com um livro chamado Jaguarão Universo, em que, de certa maneira, recolhi uma parte do Jaguarão e o Resto do Mundo, e esses dois acabaram sendo publicados posteriormente em cada uma das partes do Contos de Sempre. Então, eu esperava uma oportunidade de publicar.

ZH — Contos de Sempre e Uma Terra Só, seus dois primeiros livros, parecem comungar de um propósito comum: mostrar a fronteira como uma região de identidade única no tempo, no caso de Contos de Sempre, e no espaço, em Uma Terra Só. Foi um projeto consciente?
Schlee —
Eu não gosto de dizer que eu tenha um projeto literário, que tenha pretendido exatamente: “vou fazer assim”. Não consigo entender nenhum colega meu, nenhum autor que tenha um projeto literário, não creio nessa definição. Comigo, o que aconteceu foi que eu tinha esses dois livros de contos que haviam vencido concursos, e os dividi no primeiro livro, mas tinha o impacto do tempo decorrido, e eu os inverti no volume, a seção que eu denominei Contos de Ontem eram os mais recentes, e os Contos de Hoje eram os mais antigos. Essa era uma perspectiva estritamente temporal. Já no livro seguinte, Uma Terra Só, eu tinha pretensão de fazer o leitor atentar para um mundo que não é o verdadeiro, e sim o meu mundo imaginado, meu mundo literário, que eu pretendi conquistar e acabei por ele conquistado, porque não tenho condições de sair dele.

ZH — É estranho o senhor falar na ausência de um “projeto”, já que os seus livros caracterizam-se por uma unidade temática (O Dia em que o Papa Foi a Melo, Contos de Futebol).
Schlee —
São livros em que trabalho em cima de uma tese. Há um determinado momento nesse meu mundo literário em que descubro alguma coisa para desenvolver em forma de tese, para demonstrar ao leitor minha visão de mundo. Nesse aspecto, há um certo conteúdo pedagógico. É uma pretensão grande, mas eu vejo assim. Então, quando eu parto para um livro como O Dia em que o Papa Foi a Melo, estou perplexo diante dessa visita do Papa, sendo o Uruguai um país laico declaradamente. Não só porque está expresso na Constituição, mas porque o Uruguai é laico de fato, e em 1904 já não havia mais crucifixos em repartições públicas, uma discussão que fomos ter agora aqui no Brasil. Sabendo que nesse país laico, na sua zona mais pobre, paupérrima, o papa iria fazer uma visita, fiquei atônito. Então resolvi não ir a Melo no dia 8 de maio de 1988, o dia em que ele foi. Mas fui na semana seguinte. E consegui entrevistas e toda uma documentação para escrever um livro de contos.

ZH — O Dia em que o Papa Foi a Melo é um relato da visita da maior autoridade da cristandade ao Uruguai, mas o primeiro conto, o que abre o livro, enfoca um padre em crise de fé que decide não ver o papa. É a representação desse confronto que o deixou perplexo entre a figura do papa e a laicidade do Uruguai?
Schlee —
Exatamente. Esse padre, que, de certa maneira, sou eu, vai negar tudo, mesmo com todo seu conhecimento do cerimonial religioso. Ele não nega apenas a questão da visita do papa, o que é elementar, superficial. Ele contesta tudo, e isso está representado em pequenos detalhes de sua indumentária, da desolação do espaço onde ele vai se meter, uma paisagem à qual o Papa não iria. Tudo isso está pesando em um conjunto do qual tentei fazer a receita desse conto, que é, de fato, uma história chave do livro. Depois tem algumas coisas no livro, como a negação do milagre, da possibilidade de um milagre... Eu não escrevi na ordem em que pus, fui alinhavando até chegar ao Conto do Turco Jaber, que é um conto louco, que denuncia, entre outras coisas, essa questão da gauchidade. Porque nós temos uma dificuldade muito grande de sermos sul-rio-grandenses. O gentílico é dominado pela palavra “gaúcho”, que se tornou sinônimo. A distância é tão grande entre o gentílico e o significado maior da palavra “gaúcho” que escandaliza.

ZH — Por que o conto? Ao longo de décadas de carreira, o senhor escreveu um único romance, e um livro de contos que se interligam, mas permaneceu focado na forma curta. Essa preferência é uma questão de fôlego literário?
Schlee —
Acho que sim. Tem aquela ideia do Cortázar de que o conto é um punch, como no boxe, no qual a gente luta com o leitor e tem a chance de ganhar por nocaute. No romance, a gente ganha por pontos. Acho que por trás disso está a capacidade que a gente possa ter de tratar de um assunto de modo a manter o leitor preso a cada parágrafo ou a cada página. O conto me garante também a proximidade do final. É um tiro curto, são mil metros no máximo, numa cancha reta, uma carreira de fôlego curto.
ZH — E o que o leva a Don Frutos, um romance de 600 páginas?
Schlee —
Eu não tinha alternativa. Estava atulhado de informação e comprometido com a necessidade de abordar o fato de que Fructuoso Rivera, duas vezes presidente do Uruguai, esteve em Jaguarão, minha terra... Um sujeito desses passando pela minha cidade não pode me escapar. Então eu tive que me atirar em cima dessa história, com a ajuda de um pesquisador chamado Amilcar Brum, que se deu ao trabalho de ir a Montevidéu para desencavar tanto material que eu poderia ter escrito três livros, separando por temas. Por exemplo, coisas que não aparecem muito no livro, como a intervenção brasileira, uruguaia e argentina no Paraguai, que não está lá porque o Rivera morreu antes. Mas eu tinha o tema do Rivera em Jaguarão e por ali fiquei.

ZH — Don Frutos parece singular não só pela extensão. É a única história em que o senhor enfoca diretamente uma figura de poder. O fato de Rivera estar doente quando chega a Jaguarão foi o elemento que tornou esse vulto “humano” para ser abarcado pela sua ficção?
Schlee —
Exato. No primeiro capítulo do Don Frutos, a decadência física dele é notória, com o homem se mijando, dependendo da mulher e de um outro cara para ajudar a se movimentar, sem ter mais nada. E adiante no romance, a morte do Rivera pode ser lida de várias maneiras, até mesmo por quem domina a grande literatura uruguaia moderna, ao saber que aquele militar que era o secretário particular do Rivera, Onetti, era de fato parente do Juan Carlos Onetti. Há um falso diálogo final, no qual Rivera se refere a seu ajudante Capitão Onetti, que é feito com uma colagem de textos do Onetti escritor.

ZH — Havia, então, uma dificuldade em lidar com o caráter biográfico da narrativa de um símbolo político, dificuldade expressa na estrutura do livro?
Schlee —
Tem outras coisas, como por exemplo a vinculação com os índios, ou o fato de ele os ter traído ou não, aquela famosa matança dos charruas. Eu estava sempre no fio da faca. O que eu tenho de documentação real do Rivera, conseguida pelo Amilcar Brum, são papéis do governo, da Assembleia Constituinte, da Câmara, do Senado, das igrejas. Agora, biografias do Rivera, eu tive que repassar todas as que havia disponíveis. Para as escritas pelos blancos, o Rivera era um bandido, ladrão, safado. Para os colorados, era um herói nacional, fundador do país. Eu tive que ficar em cima disso, e em nenhum momento pretendi que o leitor acreditasse que ele era bom ou mau, eu queria, como fiz em toda minha ficção, fugir do maniqueísmo.

ZH — O senhor é conhecido no Rio Grande do Sul e no Uruguai, mas não no Brasil. Crê que paga o preço por lidar com um território ficcional tão restrito?
Schlee —
No Uruguai eu sou considerado autor uruguaio, e fiz parte de uma coleção publicada pela editora Banda Oriental. Mas eu não quero me enganar em cima de proporções. Se em um país com 3 milhões de habitantes e um território menor do que o RS, se lá eu sou muito mais conhecido, proporcionalmente, do que no Brasil, é porque não há proporcionalidade cabível entre Brasil e Uruguai. A minha literatura, que pode ser muito conhecida dentro do Uruguai, é virtualmente desconhecida no Brasil, primeiro pela dificuldade temática. O meu mundo literário tem pouco a ver com o Brasil. E não sairei desse mundo em um esforço falso para ganhar leitores, porque se eu deixá-lo, estou perdido.

ZH — O senhor lida com o lado B da mitologia da formação do território. Quando lança Contos de Futebol, esse olhar se dirige ao lado avesso de outra mitologia, esta contemporânea, a do futebol. Foi um passo consciente?
Schlee —
Não, eu queria apenas escrever um livro de futebol. A explicação está em um conto chamado Encanto de Futebol, cujo título diz tudo. Esse “encanto de futebol” contaminou uma série de coisas relacionadas à minha vida, o encanto com o futebol uruguaio em particular. Por isso esse livro saiu como Cuentos de Fútbol primeiro no Uruguai. É um livro uruguaio, ainda que não tanto como o Limites do Impossível e principalmente O Dia em que o Papa Foi a Melo.

ZH — Em Contos de Verdades, o senhor escreve “causos”, mas os chama de “verdades”, mesmo sendo histórias que se apresentam como verdadeiras, mas podem não ser.
Schlee —
Eu não havia pensado nisso, mas é assim mesmo. Eu estou falando de “verdades” nesse livro mais ou menos do mesmo jeito que se desenvolvem os “causos”, as “fofocas”, para usar uma expressão mais vulgar, e que dão origem à construção de uma verdade que não é necessariamente verdadeira.

ZH — Em Contos de Sempre e Uma Terra Só seus personagens se expressam em uma mistura de espanhol e português, como na fronteira. A partir de Linha Divisória, não apenas o personagem no diálogo, mas o próprio narrador deixa um idioma contaminar o outro. Por quê?
Schlee —
Eu aprendi que é possível o narrador assumir a maneira de ser do personagem, deixando de narrar à sua própria maneira. Então, no momento em que estou fazendo uma narrativa referente a um personagem, eu me sinto autorizado a usar esse recurso. Porque há uma dificuldade muito grande para qualquer autor que, como eu, trabalha com personagens rústicos, geralmente pobres, sem educação formal, como são os párias. Os meus personagens são os rejeitados da sorte. Essas pessoas não têm a minha formação, mas têm seu próprio modo de pensar. E quando tento reproduzir o pensamento deles, eu me sinto autorizado a usar esse recurso. É uma coisa que eu vejo que enriqueceu muito a literatura do Simões Lopes Neto, por exemplo.

ZH — Os Limites do Impossível: Contos Gardelianos é um livro em que o senhor mescla conto e novela ao narrar uma trama única tecida das histórias das mulheres que orbitaram o pai de Carlos Gardel. Como chegou a essa história?
Schlee —
Essa história eu resolvi escrever no momento em que tive certeza de que era preciso denunciar as arbitrariedades do então presumido pai de Carlos Gardel a partir de tudo o que ele fez na política do Uruguai, mas particularmente em relação ao nascimento desse filho, fruto de estupro e incesto. Então achei que a narração não deveria se referir diretamente a ele, mas às mulheres que tiveram a ver, direta ou indiretamente, com o nascimento de Carlos Gardel.

ZH — O Dia em que o Papa foi a Melo e Os Limites do Impossível, a bem dizer, anteciparam respectivamente O Banheiro do Papa, longa ficcional de Cesar Charlone, e o documentário El Padre de Gardel, que teve uma sessão recente na Capital. Como vê essa circunstância, uma vez que em ambos os casos não parece ter havido menção a seu tratamento anterior do tema?
Schlee —
O que eu fiquei estranhando é o quanto sou desconhecido. O Banheiro do Papa tem uma história que poderia ser inspirada no Conto V de O Dia em que o Papa Foi a Melo, também chamado de Melo Era uma Festa, com todas aquelas decepções dos personagens... O clima é o mesmo, os acontecimentos correspondem, os caras que fizeram o filme tiveram o mesmo sentimento que eu tive de identificação com aquelas pobres pessoas que gastaram os últimos centavos que tinham, mataram um leitãozinho de estimação roubaram uma capivara para poder oferecer comida aos brasileiros, porque ia ter 40 mil brasileiros lá. Eram pessoas não à procura de um milagre, mas buscando criá-lo, e foram frustradas. O papa passou, virou lixo tudo aquilo. O filme mostra uma ideia que está lá no meu conto, a de alguém que pensa em fazer uma latrina. Mas o protagonista não está no conto, a guria que queria ser radioatriz não está no conto, e aqueles personagens me emocionaram às lágrimas. Não tenho do que reclamar, fico feliz que tenham feito um filme tão bom. Esse documentário do Gardel eu não vi. Os fatos, os acontecimentos históricos que sustentam a minha ficção no caso dos Contos Gardelianos, são comprovados e são os mesmos que devem ter sustentado o documentário. Não tenho como me queixar de nada. Só fico com pena que estejamos tão perto e tão longe do Uruguai ao mesmo tempo, o que comprova que meu mundo literário é limitado e distante.

ZH — Contos da Vida Difícil, seu livro mais recente, retrata um momento em que Jaguarão se torna ponto de passagem do tráfico de mulheres – na sequência da construção da ponte que liga a cidade a Rio Branco, no Uruguai. Havia a intenção de confrontar essa ponte, signo de passagem, com a situação dessas mulheres, presas à prostituição no município?
Schlee —
Bem observado. Se há alguma possibilidade de encantamento com esse tema, como também em relação ao futebol, é no fato de ser um assunto que Jaguarão considerou necessário esconder e fazer de conta que não é parte de sua memória. Isso aconteceu de uma forma que eu não procurei explicar, porque eu próprio não encontro explicação. Por que esses fatos raramente respingaram algumas famílias de Jaguarão? Por que a maioria das pessoas de Jaguarão esqueceu disso? Por que não se fala que o cabaré que foi tão importante, o do Tomazinho, ainda existe como prédio pertencente a um clube social, o Instrução e Recreio? Os sócios se envergonhariam de dizer “aqui funcionou um cabaré”? Não sei se terá sido isso, mas os acontecimentos eram tão contraditórios que em cima deles eu tinha de construir algo.

ZH — O primeiro conto desse livro, Carnet de Divertissement, é sobre um caderninho de nomes dos clientes dos cabarés. E o senhor o compara textualmente a um “caderno de venda”. Essa frase tem o intuito de equiparar as mulheres ali escravizadas a mercadorias de comércio, ?
Schlee —
Sim. Ao citar os fregueses cujos nomes aparecem nesse caderno, estou denunciando que muitos deles viraram nomes de rua e é melhor nem seguir adiante. É uma justificativa em parte para essa minha narrativa estar rompendo com esse pacto de silêncio e esquecimento.
 
*Publicada no Segundo Caderno da Zero Hora de 27.10.2013 

2 comentários:

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  2. O leão do Capão do Leão não deixa pedra sobre pedra, através de sua capacidade oratória ensina como faz a melhor literatura sul-rio-grandense, enquanto isso os homenageados da Feira do Livro são contratados, colaboradores, ou puxa-sacos da RBS.

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