quarta-feira, 10 de julho de 2013

34 anos depois (por Pedro Jaime Bittencourt Jr.*)

Em novembro de 1978, na Rua Botafogo, Bairro Menino Deus, em Porto Alegre, teve início o caso que ficou conhecido como “sequestro dos uruguaios”, acontecimento que ganharia repercussão internacional nos anos subsequentes.

Em 1979, o Governador Sinval Guazelli, da Arena (Aliança Renovadora Nacional, partido dos militares golpistas de 1964), esteve em visita à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, trazido pelo então Diretor daquela instituição, Prof. Silvino Joaquim Lopes Neto.

O sequestro de Lilian Celiberti e Universindo Diaz, ativistas políticos do Uruguay, refugiados no Brasil e retirados a força da sua residência na Capital do Estado, tornou-se célebre em toda a América do Sul, por se tratar do primeiro caso, quiças o único, devidamente comprovado do “colaboracionismo” militar existente entre os regimes ditatoriais do Cone Sul, visando a captura e “troca” dos refugiados políticos no Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile e no Paraguai, dentro da chamada “Operação Condor”.

Com a manobra, os regimes de exceção impediam que os ativistas políticos de qualquer um desses países pudessem colocar-se a salvo das forças policiais de outro, o que implicou em prisões arbitrárias, na tortura e na morte de um sem número de pessoas ao longo dos anos 1970.

Sequestrados os uruguaios, e levados à pátria oriental pelas forças repressoras que faziam parte da Operação Condor (policiais do Brasil e do Uruguay que trabalharam juntos no caso), tiveram início alguns movimentos de protesto no país inteiro.

A vinda do Governador a Pelotas, viria a proporcionar uma rara possibilidade de indignação diante do crime consumado pelo Estado, ainda que não fosse seguro a ninguém protestar naqueles idos de 1979, quando, diga-se de passagem, muitos dos arautos da democracia de hoje eram meros sabujos dos ditadores da época.

Sem saber ao certo o que fazer, nós, jovens estudantes da UFPel, fomos até as escadarias da Faculdade de Direito esperar pelo Governador; de repente, um grupo tomou a dianteira e passou a receber o Guazelli com calorosos abraços e prolongados apertos de mão, entusiasmando a autoridade maior do Rio Grande do Sul.

A turma da qual eu fazia parte – um grupo de não mais que quatro ou cinco estudantes – ficou atônita, mas uma coisa nós já havíamos decidido: não cumprimentaríamos o Governador do Estado sob hipótese alguma, seria a nossa forma de “protesto” contra a presença dele na Cidade e na própria instituição.

Para surpresa geral, entretanto, o Ângelo Alfonsin “Zanatta”, um dos mais agudos do nosso grupo, resolveu fazer diferente, e espichou a mão para cumprimentar o Guazelli. Perplexos, nós pensamos que ele havia enlouquecido, afinal era um dos “nossos”, e estava agora de braço estendido para o Governador.

Percebendo a proposta de cumprimento, o Guazelli também ofereceu a mão para cumprimentar o Ângelo, que, ato contínuo e surpreendentemente, recolheu o próprio braço, desferindo a frase que me acompanha todos esses anos: – Eu só vou te apertar a mão no dia em que tu me devolveres a Lilian e o Universindo – disse, para espanto e constrangimento do visitante, que, puxado pelo Diretor, se encaminhou rapidamente para o interior do prédio da Faculdade, tentando se livrar do mal-estar causado pela expressão e pela reação do nosso pequeno grupo.

Pois na sexta-feira passada (28/06), no prédio dessa mesma Faculdade de Direito da UFPel, mas no auditório, não nas escadarias, eu pude conhecer a Sra. Lilian Celiberti e contar-lhe essa pequena história; a história de um gesto simples, mas que, como tantos outros que ocorreram no mundo inteiro, serviu para denunciar o arbítrio do Estado-sequestrador, sendo suficiente, na palavra da própria Lilian, para salvar-lhe a vida e trazê-la novamente, como cidadã livre, ao nosso País, onde atualmente acontecem centenas de protestos democráticos, agora, 34 anos depois...

Pedro Jaime e Lilian, na nossa Faculdade, 34 anos depois,
sob os olhares do Bruno, do Delfim e da Gilda
*Pedro Jaime é um velho amigo, desde a época em que estudamos juntos, no 2º Grau do finado Santa Margarida. Depois, fomos contemporâneas na Faculdade de Direito. De Arroio Grande, é Xavante e tem o Tino como referência futebolística. Aliás, é autor de "O 'Clássico' - Uma História de Paixão", sobre o futebol de sua terra, bem como responsável pelo excelente blog Auto Retrato (http://autoretratopedro.blogspot.com.br/).

4 comentários:

  1. Jamais imaginei estar vivo para ver essa cena, a grande guerreira Lilian de corpo e alma, onde passamos metade de nossas vidas.
    Eu e Universindo (in memoriam) estivemos presentes de alma, sempre estaremos.
    Grande Pedro Jaime! obrigado Aldyr.

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    1. Essa história é fantástica! Não a presenciei, que pena! Mas me lembro de outra, quando o Silvininho trouxe o Marcelo Caetano, fascista português, para uma palestra sobre... Direito Constitucional (!!!!). Quando "eles" entraram, nós (Betão à frente) nos retiramos do "Salão Nobre". Outros tempos, né Ângelo, né Pedro...

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  2. Valeu, Aldyr, pela publicação, pelos generosos elogios e gentis referências.
    Esse encontro com a Lilian me lembrou também de um contato que tive com Pepe Mujica, em Montevideo, no ano de 1997, quando Mujica era Deputado, se não me engano.
    Dom Pepe, dentro do Congresso Nacional uruguayo, de cigarro palheiro na boca, camisa puída e calça rasgada, ao nos ver (eu e outro companheiro) na ante-sala do seu gabinete, percebendo que perguntavam se nós tínhamos marcado agenda, interrompeu as recepcionistas e, com o generoso sorriso que o caracteriza, disse apenas:
    - Que passem, que passem.
    E ficamos ali por quase duas horas, tomando café e "hablando" de política, e das coisas do Brasil e do Uruguay, com o grande Pepe Mujica, outro símbolo (assim como Lilian) do pequeno País vizinho, exemplos que a gente gostaria de encontrar mais por aqui.
    Viver essas histórias - "viver para contar" (mesmo sem a maestria de um Garcia Márquez ou de um Aldyr Schlee) - é realmente um das grandes prazeres desta vida.
    Obrigado, mais uma vez, Aldyr, pelo espaço e pela publicação, e um grande abraço para o Ângelo, protagonista mor dessa história.
    Valeu!

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    1. BF está aqui, disponível; para outras contribuições tuas, Pedro. Mas a reativação do Auto Retrato é fundamental!

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