domingo, 27 de janeiro de 2013

Les Valseuses

Corações Loucos é um filme francês de 1974 que vi, há muitos anos, lá no saudoso Cine Rei (na Sessão das 10, que acontecia sempre às sextas-feiras). Para quem não é do tempo do Cine Rei, vale esclarecer que se tratava de um cinema pequeno, que ficava na Andrade Neves (no atual calçadão, entre a Neto e a Voluntários) onde hoje funciona uma dessas tantas lojas de eletrodomésticos. Nas sessões "normais", o Rei sobrevivia da projeção de filmes eróticos (era época das pornochanchadas!), mas, às sextas, em qualquer estação e com qualquer tempo, o cineminha ficava cheio, com outro público, especialmente composto por "estudantes engajados". 

Assim, praticamente todos os meus filmes favoritos, os meus cults, aqueles que integraram ou integram a minha lista dos "10 melhores", assisti lá.

Receoso, revi Corações Loucos agora, num DVD que encomendei pela internet. Meu medo era ter uma decepção, do filme não ser tão bom como eu o considerara na juventude (esse tipo de sensação experimentei diversas vezes). Mas não! O filme de Bertrand Blier é, mesmo, muito bom, tão surpreendente e transgressor como me pareceu lá nos anos 70.

O bom texto que segue, por apropriado e superpertinente, serve para justificar minha predileção pelo filme. É de autoria de Paulo Manuel Cristo e foi originalmente publicado em 22 de julho do ano passado no blog trombonecomvara.blogspot.com.br.

Sugiro ("bonito nome", como diria o Sr. Suzuki) que aproveitem a possibilidade de adquirir Corações Loucos em DVD, junto à Livraria da Travessa (www.travessa.com.br).

Les valseuses: Dewaere, Miou-Miou e Depardieu


Inocência e culpa. Corações Loucos, filme coragem de Bertrand Blier 

Aviso que muitas pessoas irão abominar este filme. Por estarmos em 2012, muitos estarão desacostumados a ver um filme que é absolutamente anti-politicamente correto. Vê-lo é como ler Pondé. Na verdade bem melhor que lê-lo. Feito em 1974, esta obra, amada por Pauline Kael, é uma comédia. Mas uma comédia como não existe mais. Uma comédia ofensiva. Principalmente às mulheres. Vamos ao roteiro.

São dois amigos. Pobres, sujos e obcecados por sexo. Estamos com eles no mundo da liberdade pura, e por serem assim, mesmo que você goste do filme, não gostará deles. Pessoas mais "sensíveis" os acharão bobos. Pior, maus. Durante uma hora eu adorei o filme e os detestei. Mas Blier consegue algo mágico: súbito passamos a compreendê-los e a os aceitar. Então o filme revela sua grandeza, é uma obra-prima.

Os dois vivem soltos e portanto se viram. Roubam, aplicam golpes e tentam transar com toda mulher que encontram. O estupro é sempre uma possibilidade. Mas o filme nunca é violento, ele é mais que isso, é revolucionário. E nunca politico. Eles são malandros mas não são simpáticos. Nada possuem de "charmoso", são toscos, reais, exagerados, burros e bastante egoístas.

Filho de meu tempo ( 2012 ), passei o filme tentado a colocar neles um rótulo. Psicopatas? Se fosse feito agora, eles seriam um caso psiquiátrico, e com esse diagnóstico tudo estaria explicado e domesticado. Mas não aqui. Eles não são doentes. Volto a dizer, são livres, e pensam que ser livre é ser um tipo de troglodita. Assumem isso. E existem nesse estado de anarquia. Se querem um carro, o pegam; se desejam sexo, seguem uma mulher até pegá-la.

Bertrand Blier é um dos mais interessantes diretores franceses. Seus filmes são sempre provocativos. Aqui temos quatro atores, na época desconhecidos, e que se tornaram símbolos sexuais em 1974. Gerard Depardieu, magro e bonito, é o mais forte dos dois amigos. Chega a sodomizar o companheiro e se suaviza ao se apaixonar por mulher mais velha. Uma atuação histórica. Suas cenas de sexo nos fazem rir, riso com raiva pois sabemos que o que ele faz é nojento. Seu amigo é feito por Patrick Dewaere e vale aqui uma apresentação. Com este filme Patrick virou mania na França. Fenômeno era seu rótulo. Mas logo se viciou em heroína e morreu muito jovem. Ele faz o amigo mais azarado, ainda mais burro que Depardieu. É apaixonante. E asqueroso!

Há uma mocinha que não consegue gozar, então ela transa com qualquer um. Papel feito por Miou-Miou, uma atriz que se fez estrela também aqui. Se voce só conhece cenas de sexo feitas no cinema atual, repare nestas. Nada há de falso aqui. Nenhuma luz especial, nada de música sexy ou clima de neurose. É simples ato animal, despudorado, natural, tolo, desglamurizado, banal. As cenas de sexo são todas deliciosas, engraçadas e violentas, infantis.

Após vê-los praticar vários crimes, fiquei com medo que viesse o castigo, ou pior, uma explicação racional de seus atos. Mas não. O filme não tem o menor traço de moralismo. Eles não são punidos, não são heróis e não vêem a luz. Apenas se viram na estrada. A fala final de Depardieu é perfeita. Dewaere pergunta: Então ficaremos assim pra sempre? De lá pra cá, sem parar? E Depardieu responde simplesmente: -POR QUE NÃO?

Não se fazem mais filmes assim. Blier fala da liberdade e filma livremente. E leva seus atores com ele.

Repito: é uma obra-prima e é um dos mais saudáveis filmes já feitos.

PS: Há uma adolescente que perde a virgindade com eles depois de ajudá-los a roubar o próprio pai. É Isabelle Huppert. Maravilhosamente desafiante. Sua carreira também começava aqui.

9 comentários:

  1. Aldyr, saudade do cine Rei com sua famosa sessão de arte das quintas.
    Este filme não vi por estar no limite de faltas em Dto Comercial ( professor Corvina).
    O texto é sensacional, vou correndo buscar, Miou-Miou é de matar papai.

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    1. Pô, Ângelo, tens razão: as sessões "de arte" do Rei eram às quintas (e não às sextas, como venho repetindo equivocadamente). Hoje confirmei isso num papo com o Luis Carlos Gastal, na rua. Então, "veja errou"...

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    2. Queremos uma postagem sobre o "assunto do momento" com o toque do BF, não é mesmo? Ângelo.

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    3. Vaz, o "assunto do momento"(eterno) se chama Miou-Miou, ainda bem que o Aldyr não entende bulhufas de extintor de incêndio.

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    4. A RBS esgotou o "assunto do momento". Culminou a cobertura com o David Coimbra caminhando entre os caixões dos mortos. Ah, só falta ainda aquela reportagem tradicional em que os bombeiros reencontram os "heróis anônimos" que auxiliaram no socorro às vítimas...

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    5. ... e o passaporte chamuscado do cantor-terrorista no meio das cinzas.

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  2. Vou ver se consigo assistir, embora de Domingo para cá o clima esteja mais para "A Montanha dos Sete Abutres" !

    Oduvaldo Jr.

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    1. Perfeito! Viva o "mondo cane"! Viste aquela repórter da Globo perguntando a uma mãe (no momento do enterro -do filho) "- o que a sra. está sentindo neste momento?"

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  3. A quem interessar possa: esqueci de mencionar um detalhe importante. A música do filme é genial, do não menos genial Stephàne Grappelli.

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